Entrevista concedida pelo economista e cientista político Theotônio dos Santos ao jornalista Marcelo Lins, para o programa Milênio, da Globo News.
Hiperinformação, multiplataforma midiáticas, permanente revolução tecnológica. Olhando de relance, o futuro está em nosso cotidiano, mas o passado continua bem presente, seja em questões que ainda não foram resolvidas, como a pobreza e as condições de profundas desigualdade sociais, ou na política, que busca um caminho para se adaptar às novas realidades, por exemplo. Em um momento em que os grandes sonhos e ideologias que moldaram o século XX parecem ter caído por terra, em que muitos defendem a ideia de um mundo apolítico, ainda há quem acredite na necessidade de uma postura, uma vivência e mesmo de uma prática ideológica. O economista e cientista político Theotônio dos Santos, um dos formuladores da teoria da dependência, se enquadra sem dúvida nessa última categoria. E é com essa perspectiva que Theotônio mantém uma intensa atividade intelectual. O livro mais recente Desenvolvimento e Civilização — Uma Homenagem a Celso Furtado traz no título e no subtítulo duas profissões de fé do professor: a paixão pelo estudo dos mecanismos de desenvolvimento e a admiração pelo economista que trabalhava já nos anos 50 do século passado com essas mesmas ideias. Theotônio chegou a ter uma militância política na clandestinidade depois do golpe de 1964, mas, assim como Celso Furtado, deixou o país e viveu anos no exílio. Numa tarde nublada no Rio de Janeiro, Theotônio dos Santos falou ao Milênio.
Marcelo Lins — Eu já li o senhor rejeitando a ideia de dizer que não existe mais um desenvolvimento, que não existe mais Terceiro Mundo. Nesse processo, pensando tudo como uma coisa global, o senhor defende a ideia de que ainda assim existe um Terceiro Mundo, que ainda está em outro patamar de desenvolvimento mesmo em relação a essas potências tradicionais, digamos assim.
Theotônio dos Santos — Veja bem, há uma coisa muito dramática nessa maneira fechada de ver o mundo desde as grandes potências. O século 19 é considerado nos estudos de Relações Internacionais como a época do liberalismo, em que o livre mercado era a forma dominante etc. Ora, a maior parte do mundo está sob o domínio dos centros imperialistas europeus. Eles não podiam comerciar senão com os seus dominadores. Não existia livre comércio pra Índia, não existia livre comércio pro Brasil. No caso do Brasil, sim, porque os portugueses estavam fora e os ingleses assinaram conosco um tratado que pretendia ser de livre comércio, mas era comércio com a Inglaterra. Nós éramos completamente subordinados. Os argentinos assinaram um acordo entre o porto de Buenos Aires e o porto de Londres, a plena igualdade. Os navios ingleses entraram. Agora, nunca chegou um navio argentino em Londres. Você falar que isso é livre intercâmbio, francamente é parte de uma visão ideológica que te cria uma realidade falsa. E todo mundo acredita. Os estudos acadêmicos estão orientados por esse tipo de visão do mundo. Desconhecer a potência da Índia, a potência da China, a potência do Japão… Essas grandes potências que, no momento em que elas puderam romper essa dominação, elas avançam. E avançam no sentido de se converter em potências mundiais. Então, quem estava antes dominando, agora tem que baixar o facho e buscar negociar. E na verdade nós, já nas décadas de 1960, 1970, caminhamos pra essa ideia. Tem um sistema, há uma divisão internacional do trabalho. A evolução dos países chamados, por exemplo, subdesenvolvidos não é um problema interno desse país só. Pelo contrário, é uma forma pela qual essas regiões se adequaram a divisão internacional do trabalho. Nós, por exemplo, questionamos nessa época e foi uma questão muito fundamental. Nós não somos países atrasados. Nós somos os países que representaram um papel subordinado, dependente, nessa divisão internacional do trabalho, sem a qual os dominantes também não teriam se desenvolvido. Sem o ouro de Minas Gerais, você não entende o atesouramento da libra inglesa. Sem a produção que nós desenvolvemos, sem o algodão americano, você não entende o desenvolvimento da Inglaterra, a Revolução Industrial. Sem liquidar tecidos indianos pra abrir comércio para o tecido industrial… Nós não somos um povo atrasado. Nós somos parte da evolução do capitalismo como sistema mundial.
Marcelo Lins — A crise econômica, que ainda está em curso na Europa que não dá sinais de arrefecer tão cedo, qual sua análise sobre as razões da crise, e pra onde vai essa Europa.
Theotônio dos Santos — Eu tenho discutido com os meus amigos europeus — tem um grupo de economia mundial na Espanha que é muito ativo, com gente do mundo inteiro. Eles não querem escutar, mas o que eu digo pra eles é o seguinte: “Vocês são Eurásia. Numa hora em que a Ásia está na dinâmica econômica que ela está nesse momento, que é a dinâmica que dá direção pra economia mundial, vocês querem resolver os seus problemas com os Estados Unidos. Abram-se pra Ásia. E aí que vocês podem voltar a ser uma potência econômica significativa, porque é mercado colossal. Aí vocês podem ter uma dinâmica realmente positiva. Agora, se vocês querem se fechar na Europa ou querem manter esse atlantismo, você não vão pra lugar nenhum, porque os Estados Unidos está em decadência e vai continuar em decadência”. Claro, vai reagir, vai ter importância todo esse tempo, mas a taxa de crescimento americana dificilmente será superior a 2%, enquanto a China vai continuar crescendo a 7%, 8%, 9%, até 10% outra vez. Então a diferença em termos de mercado mundial é fantástica. Igual ao Brasil querer rearmar uma relação com os Estados Unidos, subordinada. É como você querer durante o começo do século 19, em vez de fazer independência nossa, manter-se sob domínio espanhol e português, duas nações em decadência. A Espanha era fantástica, o poder da Espanha, mas estava em decadência. A decadência é parte do sistema mundial, da evolução das civilizações. E você ficar do lado do decadente é um erro muito grave. Muito irresponsável.
Marcelo Lins — O senhor vê algum sentido em traçar um paralelo entre a crise econômica que vem desde 2008 mais profundamente e a crise de ideologias, que parece marcar as grandes democracias do mundo.
Theotônio dos Santos — Veja o caso do Brasil. O Brasil, como todos os países da América Latina se transformou de um exportador para os Estados Unidos para um exportador pra China. Porque o problema não é só que a China tinha quase zero de importação e hoje é igual e está passando os Estados Unidos. O problema é que os Estados Unidos não aumentou como mercado. Ao contrário, o Estados Unidos é o único déficit comercial que nós temos. Nós temos superávit com a China: exportamos mais pra eles do que importamos, apesar de dizerem que os chineses estão invadindo tudo. Não, nós exportamos mais pra China que importamos.
Marcelo Lins — Há questões pontuais como o setor têxtil e outros.
Theotônio dos Santos — Bom, eles tem vários produtos e os preços deles são baixíssimos e a qualidade está cada vez melhor. Mas o Brasil também pode desenvolver-se, pode também ter qualidade desde que eles invistam, desde que eles tenham um processo educacional da dimensão que tem a Ásia. Não só a China.
Marcelo Lins — O caso coreano.
Theotônio dos Santos — É, o Japão. A educação hoje é o instrumento principal do desenvolvimento. Sem educação você não pode ter nenhum projeto de desenvolvimento. Francamente, não ver essas coisas é muito dramático, porque te leva pra orientações falsas, te leva pra buscar soluções falsas. Nós tínhamos que estar concentrando nesse momento um grande projeto de desenvolvimento nacional. Temos esse mercado latino-americano. E temos que nos projetar para o mercado africano também. Por que não uma grande política de industrialização da África, que pode demandar máquinas e projetos do nosso setor de maquinário — que está sendo comprometido gravemente — e poderia ser desenvolvido pra América Latina também?
Marcelo Lins — Dá pra dizer que o Brasil tem diferenciais específicos que poderiam facilitar que a gente não perdesse esse bonde da história na economia de olho nessa China cada vez maior, de olho nas crises que acometem as economias mais tradicionais?
Theotônio dos Santos — De imediato, temos realmente umas riquezas naturais fantásticas. Nós concentramos a maior parte das riquezas naturais do mundo. A Unasul assumiu isso agora como uma perspectiva bastante clara, mas nós não podemos simplesmente entregar nossas riquezas. Nós temos que negociar nossa participação na evolução geral da humanidade. Os chineses não dispõem nesse momento dos meios políticos e militares para poder exigir da nossa região uma postura de ser exportador só de matéria-prima. Se nós exigirmos deles, eles têm de aceitar que nos industrializemos, que avancemos em termos de ciência e tecnologia pra utilizar essas matérias-primas pra um nível mais alto e mais desenvolvido. Eles não têm os meios de nos pressionar pra que não seja assim. Agora eles querem negociar porque eles têm um capitalismo de estado muito desenvolvido. As coisas são feitas massivamente, em grandes projetos. Eles querem discutir com a região. Não adianta pra eles ficarem discutindo com uma indústria daqui, outra dali.
Marcelo Lins — Daí a importância do estabelecimento de um bloco.
Theotônio dos Santos — Claro. Com um bloco. Infelizmente, muita gente ainda não compreendeu isso, mas o professor vai obrigando. Inclusive os próprios empresários, que não têm muita visão, a prática vai os obrigando a seguir a lógica econômica e têm de aceitar uma condução política e diplomática, como estão aceitando nos últimos anos.
Marcelo Lins — O senhor acha que faz sentido pensar na importância, do Brasil especificamente no contexto sul-americano, que o México até a América Central é uma área de influência mais mexicana, que o Brasil deveria estar ocupado com o Sul, enquanto o México se ocupa até a América Central.
Theotônio dos Santos — É uma posição do Itamaraty em geral. Eu tenho certas restrições. Eu acho o seguinte: o nível de dependência do México dos Estados Unidos é muito alto, mas também precisa ver a quantidade de mexicano que existe nos Estados Unidos. E a importância cultural dessa presença mexicana nos Estados Unidos. Então eu vejo que isso vai continuar, essa presença mexicana vai aumentar cada vez mais. Se em algum momento a crise americana se aprofundar muito, acho que uma parte muito grande dos Estados Unidos vai se aproximar muito mais da América Latina e nós vamos poder fazer uma grande política comum. Falta ambição, visão e capacidade de pensar o grande potencial que nós representamos, inclusive como cultura e como civilização. Não só ibero-americana, mas também a presença africana aqui dentro — que é uma presença extremamente avançada — e a presença indígena. Descobrimos há 20 anos que a civilização mais antiga do mundo… são três: Egito, Sumérios e Caral, no Peru.
Marcelo Lins — É uma descoberta muito recente em termos históricos.
Theotônio dos Santos — A última reunião da Unasul foi aberta pela arqueóloga que fez essa descoberta e já abriu 21 sítios arqueológicos, com pirâmides do tamanho das egípcias.
Marcelo Lins — Uma civilização complexa…
Theotônio dos Santos — Uma civilização complexíssima, com grande desenvolvimento urbano e um grande desenvolvimento científico pra época. Tinham conhecimento de agricultura, construção antissísmica e formas de construção que utiliza o vento como instrumento. O pessoal da Nasa está estudando como é que se podia fazer isso há 5 mil anos. Nós representamos uma força cultural muito grande, que o sistema de poder mundial não quis absorver. Pelo contrário, quis negar essa força. Isso limita muito o que o ocidente quer representar como eles são a civilização. Não, nós vamos criar um mundo novo em que esse peso histórico vai apresentar um peso muito grande na nova sociedade, no novo mundo que nós vamos criar.
Marcelo Lins — Pensando então nessa análise do desenvolvimento da economia ao longo do tempo, dá pra dizer que existe um pensamento de Ciências Sociais e de Economia desenvolvimentista genuinamente brasileiro?
Theotônio dos Santos — Eu creio que sim. Desde a década de 1930 que o Brasil começa a ver as especificidades históricas dele, a necessidade de se conduzir um projeto de transformação que vai dar origem a um desenvolvimento industrial muito importante. Isso vai começando a colocar o país numa posição mais avançada dentro da divisão internacional do trabalho. Contudo, o que nós já mostramos na década de 1960, esse desenvolvimento industrial não era apoiado pelo grande capital internacional, que se voltava mais pra produção de matérias-primas nesses países — por várias razões que não é o caso explicar aqui. A partir da II Guerra Mundial, eles se interessam em investir nesses países e começam a controlar a ponta do investimento que antes estava nas mãos dos industriais. Infelizmente a nossa classe burguesa prefere associar-se a esse capital internacional do que manter um projeto próprio. Nesse momento, o esforço teórico que está avançando, e que tinha já expressão em vários institutos e vários centros acadêmicos, entra em crise. Depois, sobretudo com o golpe de 1964, essa concepção do desenvolvimento se subordina totalmente ao que Golbery chamava de “o mundo cristão” — que não era tão cristão assim, porque tinha os budistas do Japão, mas eles chamavam de cristão, não sei bem por quê.
Marcelo Lins — Fala-se muito das dívidas que o Brasil, e outros países, mas o Brasil especificamente, ainda tem com quem sofreu com o golpe militar de 1964 — gente que perdeu o emprego, foi exilada ou torturada, questão de indenizações, de reparações —, mas fala-se pouco da dívida que foi deixada também pra economia desses países. O que dá pra dizer, no seu campo de estudo, que foi o legado do golpe de 64 na economia?
Theotônio dos Santos — Eu fui demitido da Universidade de Brasília cinco dias depois do golpe pelo interventor, que depois se converteu em reitor da Unicamp e se transformou numa figura considerada um grande avanço pedagógico para o país. Depois de mim vieram mais outros vários. Depois de um ano, 150 professores foram obrigados a sair da universidade. A qualidade desses professores é fundamental para o país. Nós tínhamos físicos que foram dirigir o estudo de partículas mais avançados do mundo. O país ainda vai viver milênios ainda com a obra de Niemeyer, que era um dos maiores, ou como dizia o Darcy Ribeiro: “o gênio da raça”. Estavam nessa situação grandes figuras também da música brasileira, de todos os níveis, e que foram impedidos de exercer sua grande contribuição intelectual ao país. Um país que despreza isso, e rompe com essa gente e a expulsa do país, tem que ter tido uma baixa de horizonte intelectual muito violento. Mas você pensa: seria possível que um paisinho como Portugal chegasse a ter o poder que eles tiveram sem a Escola de Sagres? Seria possível a Espanha ter a importância que ela teve sem o grande desenvolvimento de várias civilizações que se montaram ali na costa espanhola a caminho do Atlântico? E sem a contribuição vinda do lado da Itália? Você não vai conquistar a África porque uns doidos aqui foram ali. Por quê? Para que? Aonde? Havia realmente todo um projeto em torno disso. Sem um projeto, sem uma mínima ideia do futuro, do que nós pretendemos criar, nós não seremos jamais uma potência econômica, uma nação que realmente está contribuindo para o desenvolvimento da humanidade.
Marcelo Lins — O senhor teceu críticas importantes à visão ocidental de mundo e de desenvolvimento. O senhor acha que a gente ainda paga hoje um preço por essa visão de certa forma estreita?
Theotônio dos Santos — Claro, nós deixamos povos inteiros numa posição de subordinação, discriminação, e até eliminação em nome de que éramos seres superiores que estavam eliminando seres inferiores. Você vê que o capitalismo desenvolveu o século XVIII, XIX utilizando a escravidão como um instrumento da sua expansão econômica, sobretudo o tráfico de escravos. Fez isso discriminando de maneira tão brutal um povo que, historicamente de grande importância, acabou se afirmando culturalmente. Hoje tem até presidente dos Estados Unidos, da ponta do sistema. Com toda a repressão, é muito difícil sair da condição de escravo para a condição de presidente. Nós temos que destruir totalmente essa visão do mundo. Nós temos que ter uma visão do mundo em que todas as civilizações estão contribuindo pra uma evolução da humanidade pra encontrar uma forma superior de vida. A situação da mulher como ser subordinado elimina da potência de uma parte fundamental da humanidade. Eu vejo aí realmente uma necessidade muito fundamental… Se bem que não vejo como é que esse poder dominante vai fazer essa autocrítica. Em parte está fazendo. Mas é muito aquém do que precisa ser feito.