Doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ex-professor da Universidade Federal de Minas Gerais e da Fundação João Pinheiro, o economista Fabrício Augusto de Oliveira é autor de vários livros sobre economia brasileira e finanças públicas, entre eles “Dívida Pública do Estado de Minas Gerais: A Renegociação Necessária”, “Economia e Políticas das Finanças Públicas no Brasil”, “Subprime: os 100 dias que abalaram o capital financeiro mundial e os efeitos da crise no Brasil”.
Em 2010, escreveu o artigo “Contabilidade Criativa: como chegar ao paraíso, cometendo pecados contábeis – o caso do governo do Estado de Minas Gerais”. Neste trabalho, Oliveira analisa o uso da “criatividade contábil” por administrações públicas e privadas para maquiar balanços e resultados.
Na entrevista a seguir, ele diz que a prática é usada, no estado, desde 2003, detalha os sucessivos déficits mineiros e demonstra como o governo está usando fundos e empresas estatais para maquiar a situação de quase insolvência de Minas Gerais.
Oliveira também faz um alerta sobre a situação da economia mineira e diz que dificilmente essa prática será mantida no médio prazo. “Essa farsa do déficit zero está no fim e, por mais criativo e competente que o governo tenha se mostrado para vender ilusões, será muito difícil para ele continuar sustentando-as daqui para frente”, aponta. “O quadro é bastante crítico”, completa.
Pautando Minas – O que é a Contabilidade Criativa?
A contabilidade criativa consiste em um artifício contábil utilizado pelos administradores públicos e privados para ocultar resultados negativos de suas atividades ou para produzir melhores resultados em relação aos que foram efetivamente alcançados. Trata-se, assim, mais claramente, de uma maquiagem da realidade patrimonial de uma entidade, por meio da manipulação de dados contábeis, para apresentar uma imagem mais favorável de seu desempenho. Exemplos mais conhecidos da prática da contabilidade criativa no setor privado são os das empresas WorldCom, Xerox, Merck e Enron na década de 1990 e, no Brasil, principalmente do Banco Nacional.
Pautando Minas – Esse artifício é usado também no setor público?
No setor público, especialmente após a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000, os governos, de uma maneira geral, abraçaram essa prática para maquiar seus resultados fiscais e vender a imagem de estarem enquadrados nessa lei. Mesmo quando não se configura legalmente como um crime, essa prática é eticamente condenável.
Pautando Minas – No caso do Governo de Minas Gerais, você enxerga a adoção desta prática?
Desde 2003, o governo de Minas vem usando e abusando do que estamos chamando de contabilidade criativa para vender uma imagem de eficiência na gestão das contas públicas que simplesmente não existe. Começou naquele ano com a utilização de um conceito de déficit, o de déficit orçamentário, que nada, ou muito pouco, significa do ponto de vista dos resultados fiscais, para dar início à montagem de uma política de puro marketing. De que com o tal do “Choque de Gestão” se conseguira a proeza de, em apenas um ano, sanear as contas do estado e até passar a gerar, a partir de 2004, superávits orçamentários.
Pautando Minas – Houve maquiagem dos dados então?
Vem daí a expressão, a meu ver vazia, do “déficit zero”, que se tornou a principal bandeira do governo para transmitir à população, contando com o apoio da imprensa, principalmente da mineira, sobre a sua eficiência e responsabilidade no trato da coisa pública. Uma farsa que se repete até os dias atuais. Na realidade, o governo nunca deixou de ser deficitário em suas contas no conceito que, de fato, interessa nessa análise – o de resultado nominal – e em nível bem elevado. Correspondeu, em determinados anos, a até mais de 20% de suas receitas. Se não fosse assim, a dívida não teria dado o salto que deu de 2003 para 2013.
Pautando Minas – Como funciona a contabilidade criativa em Minas?
Essa prática continuou entre 2003 e 2006, com o alargamento indevido das correntes líquidas, visando acelerar o cumprimento dos indicadores da Lei de Responsabilidade Fiscal sobre os gastos com pessoal e endividamento, pois isto liberaria o governo para dar início à contratação de novas dívidas. E também com a contabilização de gastos nas áreas de saúde e educação que em nada tinham a ver, em termos efetivos, com as mesmas, de acordo com os critérios estabelecidos na legislação. O alargamento da base da receita corrente líquida terminou sendo corrigido depois de várias críticas feitas pelo Tribunal de Contas do Estado a este procedimento.
Pautando Minas – Houve acordo de ajustamento também no caso da Saúde e da Educação.
Houve a necessidade de se fazer um acordo – um TAG (Termo de Ajustamento de Gestão) – para saldar os débitos com essas áreas. Creio, no entanto, que, diante dos últimos resultados apresentados pelas contas do governo, essa farsa do déficit zero está no fim e que, por mais criativo e competente que o governo tenha se mostrado como vendedor de ilusões, será muito difícil para ele continuar sustentando-a daqui para frente.
Pautando Minas – Por quê? É tão grave a situação financeira do governo?
Bem, segundo os próprios dados do governo que estão no site da Secretaria da Fazenda, o quadro é bastante crítico. Em 2013, registraram-se déficits em todos os conceitos: orçamentário, nominal e primário. No orçamentário, o déficit foi de R$ 948 milhões, se não excluídas as operações de crédito. Isso não ocorria desde 2004. Se excluídas essas operações, que nada mais são do que dívida contratada, ele pula para R$ 6,8 bilhões. No caso do déficit nominal, que é, de fato, o conceito relevante, este atingiu R$ 9 bilhões, explicando o crescimento mais acelerado do estoque da dívida.
Pautando Minas – O senhor se diz surpreso com o resultado do déficit no ano passado. Por quê?
Houve geração de déficit primário no montante de R$ 86 milhões, o que não ocorria desde 1999, quando as finanças públicas do estado estavam destroçadas e o quadro macroeconômico era altamente desfavorável, com a falência do Plano Real e a necessidade de ajustes recessivos. Quando um governo incorre em déficit primário, isso significa que ele, além de não estar conseguindo pagar um centavo dos encargos da dívida (juros e amortizações), ainda tem de contratar empréstimos para cobrir as despesas reais do dia a dia. Um quadro de verdadeiro “pavor” contra o qual não há truques contábeis possíveis. Não estranha, diante disso, que o crescimento da dívida tenha ganhado uma velocidade preocupante.
Pautando Minas – De quanto foi esse salto?
Em 2013, a dívida consolidada líquida atingiu R$ 79,7 bilhões, um aumento de 13,1% em relação a 2012. Se há aumento da dívida é porque há déficit, independentemente de sua origem. Por isso, ainda não consigo entender bem como a “magia” do tal do “déficit zero” pôde ser vendida tão facilmente para a população, a não ser recorrendo aos ensinamentos de Goebbels, o ministro da propaganda política de Hitler, de que uma mentira repetida 100 vezes acaba tornando-se verdade.
Pautando Minas – Com esse quadro, o governo ainda cumpre a Lei de Responsabilidade Fiscal?
Se olharmos a receita corrente líquida, o percentual da dívida consolidada líquida foi reduzido até 2008, quando atingiu 176%. Mas de lá para cá voltou a aumentar ano a ano, chegando, em 2013, a 184,7%, com o estado ainda enquadrado no limite da Lei de Responsabilidade Fiscal, que é de 2 [duas vezes a receita corrente líquida], mas caminhando para bater neste teto, já que a situação tende a piorar. Basta dizer que a Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2014 prevê um déficit nominal de cerca de R$ 11 bilhões, indicando que poderemos assistir a um novo grande salto no montante da dívida.
Pautando Minas – E o que o governo tem feito para enfrentar essa situação?
Por enquanto escolheu o caminho mais fácil. Anunciou no meio do ano de 2013 um pacote cosmético de ajuste, nos moldes do “Choque de Gestão” inicial, com o objetivo de economizar R$ 100 milhões neste ano e R$ 1 bilhão em 2014. O pacote trata de fusões de secretarias, cujo número já era superior ao existente em 2002, de suspensão de despesas com viagens nacionais e internacionais, e cortes de gastos que ainda nem existem, como o bloqueio na nomeação de 20% dos cargos comissionados. Mesmo que este pacote gere os resultados projetados – o que parece difícil – é de todo insuficiente para dar conta do buraco existente nas finanças do governo.
Pautando Minas – Você diz então que o governo dobrou a aposta na contabilidade criativa?
Colocou em campo a criatividade de sua equipe para gerar receitas extra-orçamentárias. De um lado, extinguiu, por meio de um processo eticamente condenável, o Fundo de Previdência do Funcionalismo Público (o Funpemg), criado em 2002, pelo governo Itamar Franco para pagar as aposentadorias do funcionalismo que ingressasse no setor público mineiro a partir de 2003, e transferiu para o caixa do Estado o seu saldo, que era de R$ 3,2 bilhões. Mesmo o governador Anastasia considerou essa decisão como a “escolha de Sofia”: ou o Estado vergava financeiramente ou se extinguia o Funpemg. Optou pela segunda alternativa.
Pautando Minas – De que outros expedientes o governo lançou mão?
Tudo indica que, por deter o controle acionário da empresa, o governo decidiu que a Cemig desse uma bonificação, no final de 2013, de 30% para seus acionistas, só que quem detivesse ações Ordinárias Nominativas (ON) receberia em Preferenciais Nominativas (PN). Assim, caso necessite de recursos adicionais em 2014, o governo poderá vender a participação do Estado no mercado e, com isso, obter algo em torno de R$ 1 bilhão, sem perder o controle acionário. Se isso ocorrer, a participação do Estado na empresa cairá dos atuais 22% para 17%.