Por Oswaldo Guerra
Doutor em Economia pela UNICAMP. Professor Associado Aposentado da Faculdade de Economia da UFBA. Conselheiro do CORECON/BA
Com a pandemia do Covid-19, o Brasil, desde o ano passado, convive com uma forte retração econômica, devido ao uso da paralisação total ou parcial de diversas atividades econômicas como forma de controlar a disseminação do vírus. Vale lembrar que o PIB brasileiro recuou 4,1% em 2020, a maior queda desde o início da atual série histórica do IBGE, iniciada em 1996. Mesmo diante desse quadro, em reunião encerrada na última quarta-feira (17/03/2021), o Conselho de Política Monetária (Copom) do Banco Central decidiu elevar a taxa básica de juros da economia brasileira (taxa Selic) de 2% para 2,75%, a primeira alta em seis anos, e indicou a possibilidade de um novo ajuste na Selic da mesma magnitude na próxima reunião. Para muitos uma decisão precipitada, pois sabe-se que essa elevação de juros tende a desestimular a já retraída atividade econômica num país que convive atualmente com um aumento no número de casos de Covid-19, a assistência emergencial, quando vier, será em valores menores e com tempo de duração mais curto, e cuja taxa de desemprego está em torno de14%. Por tudo isto, qual a explicação para a alta dos juros?
A preocupação com a subida de preços, que ocorre desde o ano passado, justificaria a atitude do Copom que tem como sua principal missão manter a inflação dentro dos limites fixados pelo Conselho Monetário Nacional. Em 2020, segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), ela fechou com alta de 4,52%, a maior desde 2016 (6,29%). Com esse resultado, a inflação ficou acima do centro da meta, que era de 4,0%, mas dentro da margem de tolerância de 1,5 ponto percentual para baixo (2,5%) ou para cima (5,5%).
Segundo o IBGE, o principal determinante para a pressão inflacionária no ano passado foi a alta de 14,09% nos preços de alimentos e bebidas, a maior desde 2002 (19,47%). Os preços do óleo de soja (103,79%) e do arroz (76,01%) dispararam no acumulado do ano passado. Outros itens importantes na cesta das famílias também tiveram altas expressivas, como o leite longa vida (26,93%), as frutas (25,40%), as carnes (17,97%), a batata-inglesa (67,27%) e o tomate (52,76%). A inflação também foi puxada pela habitação (5,25%), cuja alta foi influenciada pelo aumento da energia elétrica (9,14%). Os artigos de residência também pesaram, por conta dos preços dos eletrodomésticos, equipamentos e artigos de TV, som e informática. Em conjunto, alimentação e bebidas, habitação e artigos de residência responderam por quase 84% da inflação de 2020.
O leitor ou leitora pode estar se perguntando: com a crise econômica, o alto desemprego e a demanda em queda por quê os preços estão subindo? Simplificadamente, ocorrem pressões sobre os preços vindas do lado da demanda, em razão de um consumo por parte das famílias, do governo e dos estrangeiros superior à capacidade de produção do país e do lado da oferta, a exemplo de custos de produção mais altos provocados por fatores como secas ou geadas, que comprometem a produção agrícola, aumentos de preços de insumos estratégicos como o petróleo e energia elétrica, e desvalorizações cambiais que tornam os preços dos importados mais caros. Nesses casos, as empresas tentam repassar esse aumento de custos para os consumidores.
Do lado da oferta, o Brasil está convivendo com três choques adversos sobre os preços. Com a pandemia, houve um impacto negativo sobre as cadeias produtivas, provocando uma redução nos estoques de produtos industriais que afetou as vendas no varejo. O segundo choque é a elevação dos preços das commodities (petróleo, ferro, cobre, grãos, como soja e milho, etc.). O terceiro choque é a desvalorização do real que torna as mercadorias importadas mais caras.
A alta nos preços das commodities tem algumas explicações. Uma parte da economia internacional, destacadamente China e EUA, vem se recuperando no rastro de robustos pacotes de estímulos governamentais; o clima reduziu a produção de alguns grãos; e alguns países formam estoques reguladores de alimentos para evitar pressões altistas de preços em tempos de pandemia, via contenção de exportações e/ou estímulos as importações. No caso do petróleo, ele sobe porque os principais países produtores têm procurado controlar a oferta no momento em que parte da economia internacional se recupera, recuperação essa que também aumenta a demanda por cobre e ferro.
Se há uma subida dos preços das commodities e o Brasil é um grande vendedor de commodities por quê com a entrada de dólares dessas vendas o real se desvaloriza pressionando a inflação? Afinal, a alta dos produtos brasileiros de exportação aumenta a renda dos exportadores fazendo, usualmente, a moeda nacional se valorizar com a entrada de dólares. Possíveis explicações para essa pouco usual desvalorização do real são: a falta de perspectiva econômica para o país, a desorganização no combate à pandemia, a instabilidade política, a preocupação de parte dos analistas nacionais e estrangeiros com as contas públicas, e a baixa taxa de juros interna, que ao reduzir o diferencial entre ela e a dos países centrais, estimularia a fuga de dólares.
Nesse cenário que combina recuperação econômica de alguns países, formação de estoques reguladores, preços elevados de commodities, e dólar valorizado, os ganhos com as vendas externas são bem maiores do que os retornos com as vendas internas, amplificando ainda mais o choque adverso de oferta no mercado doméstico. Olhando pelo lado da demanda, a desvalorização do real termina provocando um choque positivo de demanda. No caso, demanda externa que reduz a oferta interna. Isto leva a crer que, coeteris paribus, os preços dos alimentos neste ano (arroz, açúcar, carnes etc.) continuarão pesando no bolso do consumidor, especialmente os de menor renda. Ademais, vale lembrar que soja e milho fazem parte da ração animal. Quando seus preços sobem, aumenta o custo de produção das carnes de boi, frango e porco.
Enfim, diante dessas pressões inflacionárias, o Copom iniciou um ciclo de elevação de juros mesmo com a forte queda da atividade econômica. Pode-se depreender dos diversos comunicados divulgados ao longo dos últimos meses pelo Banco Central que para evitar isso seria necessária uma descompressão nos preços das commodities, uma melhora da percepção das contas públicas e uma valorização do real. Como nada disso aconteceu e, acrescente-se, assiste-se ao início muito prematuro do período eleitoral, com a devolução a Lula de seus direitos políticos, adicionada à incapacidade de Bolsonaro em liderar o país, o que deve aumentar a instabilidade política, a autoridade monetária teve que intervir para não deixar a inflação fugir de controle.
Com a subida dos juros espera-se alguma valorização do real, algo que ajudaria a reduzir a demanda do resto do mundo pelos nossos produtos. Isto porque para alguns economistas, o Banco Central teria ido longe demais no processo de redução dos juros, provocando, como citado acima, uma redução do diferencial de juros do Brasil com relação às economias avançadas e, assim, contribuindo, junto com a piora na percepção das contas públicas e a instabilidade política e econômica, para aumentar a fuga de capitais do país e elevar o valor do dólar.
Além de tudo isto, não se pode deixar de mencionar que, juntamente com choques de oferta e demanda, as expectativas dos agentes econômicos a respeito do futuro também impactam a inflação. Quando a inflação está em alta e esses agentes econômicos enxergam certa conivência do Banco Central com ela, as expectativas de inflação
tendem a se cristalizar acima do centro da meta do Banco Central. Isto torna a dinâmica inflacionária mais resistente, pois os agentes econômicos vendo a inflação alta resistem a baixar preços. O levantamento semanal realizado pelo Boletim Focus do Banco Central, junto a instituições que realizam projeções econômicas, tem apontado expectativas crescentes de aumento da inflação. No último boletim (12/03/2021), antes da publicação desse artigo, as expectativas de inflação para 2021 ficaram em 4,60%, acima do centro da meta de 2021, que é de 3,75%, com um intervalo de tolerância de 1,5% para baixo (2,25%) ou para cima (5,25%). Além disso, nos primeiros meses do ano, os preços dos alimentos não mostram desaceleração. No acumulado de 12 meses até fevereiro, o custo da comida que se leva para casa aumentou 19,4% e o IPCA, também no acumulado de 12 meses, ficou em 5,20%, perto do teto da meta. Essa seria outra razão para o Copom elevar os juros.
O problema é que embora exista racionalidade econômica na decisão do Copom, toda decisão econômica gera efeitos colaterais. No curto prazo, essa tentativa de conter a inflação, via juro, impacta negativamente a dívida pública e pode travar o crescimento econômico, dificultando a geração de emprego e aumentando a exclusão social, num país que sofre com um terrível quadro epidemiológico. É nitroglicerina pura para um governo desgastado politicamente e com crescentes índices de desaprovação popular.