Oswaldo Guerra
Conselheiro do CORECON-BA
Em dois artigos recentes[1], André Lara Resende criticou o ajuste fiscal perseguido no Brasil e propôs caminhos alternativos que fogem do receituário ortodoxo. Explicitar os argumentos e proposições de Lara Resende é o primeiro objetivo desse artigo. Para uma melhor compreensão dos mesmos é feita uma breve retrospectiva da situação fiscal brasileira. O segundo objetivo é apresentar uma proposta[2] que pode ser somada às de Lara Resende e expor críticas[3] à sua visão.
No artigo de maio de 2019, Lara Resende faz, inicialmente, uma descrição do forte ajuste fiscal grego, implantado em 2008, por imposição da chamada Troika (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Européia) e critica: apesar do déficit fiscal de 10% do PIB em 2010 ter se transformado no superávit atual, a situação econômica da Grécia em 2018 era dramática. A dívida pública, que equivalia a 150% do PIB em 2010, atingiu 180%, o desemprego, que antes do inicio do ajuste já era alto (quase 10%), estava perto de 20%, e o PIB tinha caído mais de 30% em relação a 2010.
Em seguida, Lara Resende trata das dificuldades vividas pelas democracias representativas. Essas dificuldades teriam começado, no inicio do século XXI, com o rompimento do modelo pós Segunda Guerra, administrado por uma tecnocracia ilustrada, que garantia condições mínimas de vida para os desfavorecidos através de políticas compensatórias. Nos países menos desenvolvidos, o Estado exercia ainda o papel de coordenador do desenvolvimento econômico. A partir desse rompimento e explorando a percepção de um déficit democrático, acentuada pela internet e mídias sociais, líderes populistas de direita e de esquerda têm chegado ao poder. Para o autor, “tanto a subida ao poder desses líderes quanto à capacidade deles manterem acesa a chama do ressentimento dependem da frustração de expectativas. Por isso, o mau desempenho da economia, a recessão e o desemprego são o combustível de que depende para solapar a democracia”.
Finalmente, ele chega ao Brasil e examina o ajuste fiscal em curso no país. Ainda que considere a reforma da Previdência mais que necessária, por motivos expostos adiante, Lara Resende alerta que não faz sentido depositar nela todas as esperanças, pois “seus resultados não são imediatos, não será suficiente para resolver o problema fiscal dos próximos anos, nem será também capaz de despertar a fada das boas expectativas”. E prossegue: “como demonstra de forma dramática a experiência recente da Grécia, a busca do equilíbrio fiscal no curto prazo, quando há desemprego e capacidade ociosa, não apenas agrava o quadro recessivo, como termina por aumentar o peso da dívida em relação ao PIB. A Grécia não tinha escolha: ou se submetia ao ajuste fiscal ou seria obrigada a sair da zona do euro, com custos possivelmente maiores”. Sua conclusão é que “no Brasil, a obsessão pelo equilíbrio fiscal no curto prazo é uma auto-imposição tecnocrática suicida que ameaça derrotar a frágil democracia liberal brasileira”.
Neste ponto, convém situar a questão fiscal brasileira. Ela sofreu uma inflexão em 2014. Naquele ano, ainda no governo Dilma, o primeiro déficit primário (0,6% do PIB) da série histórica do Banco Central foi registrado. Ele permanece, depois de ter crescido e iniciado uma trajetória de queda (1,9% em 2015, 2,5% em 2016, 1,7% em 2017, 1,6% em 2018). O déficit primário ocorre quando a arrecadação é inferior aos gastos totais (excluindo o pagamento de juros e correções). Ou seja, a geração de déficits primários significa uma incapacidade de o Estado manter os gastos não-financeiros abaixo das suas receitas.
Mesmo quando obtém um superávit primário, o Estado pode continuar tendo um déficit, desde que o superávit não seja suficiente para cobrir o pagamento de juros e correções. Neste caso, o déficit público é dito nominal. No Brasil, o déficit nominal é, evidentemente, maior que o déficit primário e tem exibido comportamento idêntico ao do déficit primário: cresce e começa a cair (6,0% em 2014, 10,2% em 2015, 9,0% em 2016, 7,8% em 2017 e 7,1% em 2018). Todos os governos costumam ter déficit nominal nas suas contas e ao emitir títulos da dívida para financiá-lo, eles acumulam, ao longo dos anos, uma dívida pública sob a qual incidem os juros e correções acima citados. Portanto, com o superávit primário o governo gera recursos para pagar esses juros e correções a quem, ao comprar seus títulos, lhe emprestou dinheiro, e reduz ou estabiliza o déficit nominal e a dívida pública com relação ao PIB.
A dívida pública com relação ao PIB pode ser conceituada como líquida ou bruta. A dívida líquida do setor público brasileiro não para de crescer (32,6% em 2014, 35,6% em 2015, 46,2% em 2016, 51,6% em 2017 e 54,1% do PIB em 2018). Esse conceito de dívida líquida do setor público era preferencialmente usado como indicador do comportamento da dívida pública no Brasil. Ele começou a ser questionado quando, no final do governo Lula 2 e ao longo do governo Dilma 1, alguns artifícios de “engenharia fiscal” passaram a ser sistematicamente utilizados, notoriamente a emissão de títulos públicos pelo Tesouro Nacional para capitalizar o BNDES e outros bancos públicos. Esse tipo de operação gerava aumento da dívida bruta, mas tinha impacto nulo sobre a dívida líquida, ao menos em um primeiro momento. Isso acontece porque as estatísticas de endividamento governamental refletem a dívida do setor público não-financeiro. Assim, do mesmo modo que os títulos emitidos pelo Tesouro Nacional nessas operações eram contabilizados como um passivo (dívida mobiliária), os créditos juntos aos bancos, mesmo que estatais (como é o caso do BNDES), eram contabilizados como ativos no cômputo da dívida líquida.
Em consequência, o outro conceito de dívida pública, o bruto, que não deduz os créditos dos governos federal, estaduais e municipais, passou a ser preferido por muitos analistas no Brasil e pela maioria dos analistas internacionais. A dívida bruta do governo geral no Brasil calculada pelo Banco Central é, obviamente, mais alta e a exemplo da líquida, também crescente (56,3% em 2014, 65,5% em 2015, 69,9% em 2016, 74,1% em 2017 e 77,2% em 2018). Para o FMI, esses percentuais são ainda maiores (62,3%, 72,6%, 78,3%, 84,1% e 87,9%) [4]. Isto porque, a instituição calcula a dívida bruta dos países por uma metodologia diferente da utilizada pelo Banco Central. Ela inclui os títulos públicos que estão na carteira da autoridade monetária. Por ser calculada dessa mesma forma para diversos países, ela permite comparações internacionais. A média dos emergentes em 2014, 2015, 2016, 2017, 2018 foi, respectivamente, de 40,8%, 43,9%, 46,8%, 48,5% e 50,8%. O valor de referência do FMI para os emergentes é de 80%. O Brasil está, portanto, acima da média dos emergentes e desse valor de referência.
Teoricamente, uma dívida bruta acima desse percentual costuma estar associada a uma maior probabilidade de ocorrência de eventos de calote e/ou que geram, por alguns canais – incerteza sobre a tributação futura; redução do crédito para o setor privado em razão da maior demanda por crédito do setor público; e maior risco de default, explícito ou implícito (via aceleração da inflação) – impactos negativos sobre o crescimento econômico. Sendo assim, reduzir a relação dívida pública/PIB sinaliza uma melhora na governança pública. Na visão ortodoxa, criticada por Lara Resende e seguida pela atual equipe econômica, deve-se diminuir o numerador da fração através de uma contenção dos gastos públicos não-financeiros. Ou seja, voltar a produzir, em algum momento, superávits primários, de modo a derrubar o déficit nominal e a dívida bruta, afastando o risco de calote e/ou os impactos negativos sobre o crescimento econômico. Para isto, a terapia, de um modo geral, combina corte de despesas (como a já aprovada PEC dos gastos), a venda de ativos estatais, a reforma da previdência e o aumento de receitas (principalmente de impostos, algo que pode vir a ser proposto quando o ambiente político permitir). Neste ponto, pode-se perguntar: por que os gastos financeiros são respeitados?
A rigor, todo país é soberano para adotar decisões unilaterais como repudiar a dívida pública e o pagamento acordado de juros e correções. Em outras palavras, dar um calote. O problema é que desrespeitar a propriedade privada e os contratos, considerados pilares do capitalismo, envolve um alto risco político, algo que faz com que vários países descartem essa possibilidade. Como escapar, então, da receita ortodoxa?
Voltando a Lara Resende, agora no artigo de março de 2019, ele argumenta que diante do desemprego e da capacidade ociosa existentes no Brasil, a receita ortodoxa em curso pode agravar a situação, ao gerar um quadro recessivo, terminando por aumentar o peso da dívida em relação ao PIB. Nesse caso, a queda do denominador seria insuficiente para compensar a do numerador. Ele propõe reformas que vão além de um simples ajuste fiscal ortodoxo. Começando pela reforma da previdência, ele explicita sua concordância, não porque a previdência seja deficitária, mas porque seria corporativista e injusta e porque o aumento da expectativa de vida exige a revisão da idade mínima. Mas, atenção! Para ele, o déficit do sistema previdenciário, como todo déficit público, não precisa ser eliminado se a taxa de juros for inferior à taxa de crescimento.
É importante detalhar esse último ponto. O Banco Central fixa a taxa básica de juros que determina o custo da dívida pública. Uma taxa de juros da dívida inferior à taxa de crescimento da economia tem duas implicações importantes. A primeira é que a relação dívida/PIB irá decrescer a partir do momento em que o déficit primário for eliminado, sem necessidade de qualquer aumento da carga tributária. Portanto, se a taxa de juros, controlada pelo Banco Central, for fixada sempre abaixo da taxa de crescimento, a dívida pública irá decrescer, sem custo fiscal, a partir do momento em que o déficit primário for eliminado.
Examinando a situação brasileira, ele constata que desde o início dos anos 1990, a taxa real de juros foi sempre muito superior à taxa de crescimento da economia. Só entre 2007 e 2014, a taxa real de juros ficou apenas ligeiramente acima da taxa de crescimento. A partir de 2015, quando a economia entrou na mais grave recessão de sua história, com queda acumulada em três anos de quase 10% da renda per capita, a taxa real de juros voltou a ser muito mais alta do que a taxa de crescimento. A economia cresceu apenas 1,1% ao ano em 2017 e 2018. Hoje, com a renda per capita ainda 5% abaixo do nível de 2014, com o desemprego acima de 12%, e grande capacidade ociosa, a taxa real de juros ainda é mais que o dobro da taxa de crescimento. Como não poderia deixar de ser, a relação dívida/PIB tem crescido e se aproxima de níveis considerados insustentáveis pelo consenso macro-financeiro. Neste ponto, ele avança para a política monetária e propõe que a taxa Selic seja reduzida, acompanhada do anúncio de que, a partir de agora, seria sempre fixada abaixo da taxa nominal de crescimento da renda.
Em paralelo à reforma da Previdência, ele propõe uma profunda reforma fiscal, cujo objetivo não seria maximizar a arrecadação, mas sim o de simplificar, desburocratizar, e reduzir o custo de cumprir as obrigações tributárias, de modo a estimular os investimentos e facilitar a iniciativa privada. Enquanto não houver pressão excessiva sobre a oferta e sinais de desequilíbrio externo, a carga tributária deveria ser significativamente menor.
Do ponto de vista macroeconômico, se o governo gastar mais do que retira da economia, via impostos, estará aumentando a demanda agregada. Quando a economia estiver perto do pleno emprego, corre o risco de causar desequilíbrios e provocar pressões inflacionárias. Isto está longe do caso brasileiro. Com o atual alto desemprego, significativamente abaixo da plena utilização da capacidade instalada, e com as expectativas de inflação ancoradas, o objetivo primordial das reformas deve ser estimular o investimento e a produtividade.
Do ponto de vista microeconômico, a política fiscal tem impactos alocativos e redistributivos importantes. Embora o governo não esteja sempre obrigado a equilibrar receitas e despesas, a composição de suas despesas e receitas é da mais alta importância para o bom funcionamento da economia e o bem-estar da sociedade. A preocupação dos formuladores de políticas públicas não deve ser o de viabilizar o financiamento dos gastos, mas sim a qualidade, tanto das despesas como das receitas do governo. A decisão de como tributar e gastar deve ter o objetivo de aumentar a produtividade e equidade. Aqui, Lara Resende se apóia na Teoria das Finanças Funcionais de Abba Lerner, segundo a qual o princípio das finanças sadias aplica-se aos agentes privados, mas não a governos soberanos que, ao emitir sua própria moeda, não estão sujeitos a qualquer restrição financeira. Em que pese esse apoio, Lara Resende alerta que é fundamental não confundir a inexistência de restrição financeira com licença para gastar mal. O governo continua obrigado a avaliar custos e benefícios microeconômicos de seus gastos. Um governo que equilibra o seu orçamento, mas gasta mal e tributa muito, é incomparavelmente mais prejudicial do que um governo deficitário, mas que gasta bem e tributa de forma eficiente e equânime, sobretudo quando a economia está aquém do pleno emprego.
Por isso, ele considera fundamental criar mecanismos eficientes, idealmente através da contratação de agências privadas independentes, para avaliação de custos e benefícios dos gastos governamentais em todas as esferas do setor público. A política fiscal é da mais alta relevância para o bom funcionamento da economia e para o bem-estar da sociedade. Compreender que o governo não tem restrição financeira não implica compactuar com um Estado inchado, ineficiente e patrimonialista, que perde de vista os interesses do país. Ao contrário, redobra a responsabilidade e a exigência de mecanismos de controle e avaliação sobre a qualidade, os custos e os benefícios, dos serviços e dos investimentos públicos.
Por fim, para garantir a eficiência dos investimentos e o ganho de produtividade, dever-se-ia promover uma abertura comercial programada para integrar definitivamente a economia brasileira na economia mundial. O prazo de transição para a completa abertura comercial, de no máximo cinco anos, deveria ser pré-anunciado.
Monica de Bolle propõe algo que pode ser somado a essas reformas propostas por Lara Resende. Ela afirma que o Brasil teria hoje entre US$ 100 bilhões e US$ 140 bilhões de reservas acima do necessário para ter segurança contra crises cambiais e defende após se aprovar a reforma da Previdência, e desde que se tenha cuidado para não causar flutuações excessivas na taxa de câmbio, a venda dessa parcela de excedente de reservas para abater a dívida pública e o déficit nominal corrente. A venda deveria ser acompanhada por uma flexibilização no teto de gastos ou introdução de “uma cláusula de escape” anticíclica que permitiria ao governo fazer uma política fiscal que ajudasse na retomada do crescimento econômico. Para ela, o baixo crescimento não vai mudar só com a reforma da Previdência e o Brasil vive uma situação de “crise, sem crise”, no sentido clássico das crises cambiais, bancárias e fiscal. A crise fiscal que se tem hoje no país ocorre sem risco iminente de calote. O Brasil não vai quebrar hoje ou amanhã, mas essa crise pode acabar asfixiando o país.
Resta agora, expor as críticas a Lara Resende. Luiz Fernando de Paula inicia seu texto fazendo elogios a Lara Resende por desafiar velhos paradigmas da teoria macroeconômica e por defender que o governo deve gastar bem, com investimentos bem programados na infraestrutura, na saúde, na educação e na segurança, mesmo que isto signifique um déficit temporário nas contas públicas. Para ele, essa é uma discussão relevante, já que a literatura empírica mostra que investimentos públicos em infraestrutura econômica e social têm efeitos multiplicadores de renda maiores do que outros tipos de gastos públicos. O próprio Keynes defendia que o orçamento de capital (investimentos públicos) deveria estar deficitário, enquanto que o orçamento ordinário (gastos correntes do governo) deveria ser superavitário, contribuindo assim para o equilíbrio fiscal intertemporal de longo prazo, dado o caráter contracíclico dos gastos públicos.
A rigor, ele não faz uma crítica ácida, mas sim dois importantes alertas. O primeiro é destacar as assimetrias inerentes ao sistema monetário internacional que limitam o espaço para a implementação de políticas keynesianas em países emissores de moedas periféricas, como o Brasil, uma vez que tais moedas não cumprem internacionalmente o papel de meio de pagamento, unidade de conta e reserva de valor, estando sujeitas a um “pecado original” relacionada à dificuldade desses países de emitirem dívida em sua própria moeda. Isso tem várias implicações de política, entre as quais o fato de a política econômica, sobretudo em economias abertas financeiramente, ficar sujeita às avaliações de risco e rentabilidade dos investidores globais. O segundo é ressaltar que Lara Resende defende a simplificação tributária, mas não aborda a questão fundamental da progressividade tributária, cuja importância tem sido destacada até por instituições ortodoxas como o FMI.
Críticas mais ácidas são encontradas em Bacha e, principalmente, Cavalcanti & Cardoso. Bacha concentra seus comentários na controvérsia sobre o ônus real da dívida pública que, segundo ele, vem com a chancela de Olivier Blanchard, em seu discurso de despedida da presidência da Associação Econômica Americana, e de artigos acadêmicos recentes de Larry Summers, ex-secretário do Tesouro americano. Esses autores observam que, desde 1980, há uma tendência nos países desenvolvidos para uma redução da taxa de crescimento do PIB – trata-se do que Summers chama de hipótese da estagnação secular. Apesar dessa tendência, o que também se observa desde 1980 é que a taxa real de juros sobre a dívida pública dos países desenvolvidos tem ficado sistematicamente abaixo da taxa de crescimento do PIB desses países.
A implicação econômica desta constatação é importante. Supondo que o governo mantenha um déficit primário igual a zero, o déficit do governo e, portanto, o aumento da dívida pública para financiar esse déficit, se deverá somente aos juros pagos. Ou seja, na situação em que se encontram há tempos os governos dos países desenvolvidos – com uma taxa de crescimento do PIB maior do que a taxa de juros sobre a dívida –, até certo ponto eles podem ter um déficit primário – gastar mais do que arrecadam – sem que isso implique um aumento da relação entre a dívida pública e o PIB. O problema, para Bacha, é que esse não é o caso do Brasil. A taxa de crescimento do PIB nos últimos dois anos foi de apenas 1% e as projeções para os próximos anos não superam 2,5%. Enquanto isso, a taxa real de juros sobre a dívida interna do Tesouro Nacional se situou em 5,4% ao ano em 2018. A boa notícia é que o custo real das novas emissões de dívida feitas em 2018 ficou em 3,7% ao ano, segundo o Tesouro Nacional. Ainda assim, um valor superior ao crescimento esperado para o PIB.
Ele ressalta ainda que a taxa de juros relevante nessa discussão é a taxa paga pelo Tesouro e não a taxa de juros que se infere das estatísticas do déficit público, uma vez que esta última taxa incorpora o custo de carregamento dos ativos do governo, como reservas internacionais, empréstimos ao BNDES e outros bancos públicos, além de fundos e programas. Por isso mesmo, nas estatísticas do déficit público nominal, que foi de 7,1% do PIB em 2018, a conta de juros aparece com um valor de 5,5% do PIB, enquanto que o déficit primário aparece com apenas 1,6% do PIB.
Entretanto, a coisa muda de figura se, como seria correto para ele, o custo do carregamento dos ativos do governo fosse passado da conta de juros para o déficit primário, e fosse deixado na conta de juros apenas o custo do pagamento da dívida do governo. Com esta mudança, a conta de juros baixaria para 3,7% do PIB enquanto que o déficit primário atingiria 3,4% do PIB – valores praticamente equivalentes entre si. Ou seja, nem só de juros vive nosso déficit, diz ele ironicamente.
A conclusão de Bacha é que, mantidas as condições atuais, o país continuará a conviver com uma taxa de juros sobre a dívida pública que supera a taxa de crescimento do PIB. Por isso, é importante alcançar um superávit primário nas contas do governo, para evitar que a relação entre a dívida e o PIB, que já é alta para padrões de países emergentes, continue a crescer indefinidamente.
Cavalcanti & Cardoso, por sua vez, iniciam suas críticas mencionando a omissão feita por Lara Resende dos bem sucedidos exemplos da Irlanda, Portugal e Espanha, países que também foram enquadrados pela mesma Troika e apresentam no momento bom desempenho macroeconômico. A Irlanda, por exemplo, após enfrentar um duro ajuste fiscal, depois da crise de 2008, teve em 2018 um PIB per capita cerca de 65% maior que no final de 2009 e o crescimento foi de 6,7%. Para eles, há claramente um problema de seleção no argumento de Lara Resende, pois não faltam casos de países que se ajustaram fiscalmente e voltaram a crescer.
Quanto às dificuldades vividas pelas democracias representativas, eles destacam que se é verdade que Donald Trump usou o ressentimento como estratégia eleitoral, ele foi eleito com a economia americana a pleno emprego e tem grande chance de ser reeleito, exatamente porque a economia continua crescendo. A incapacidade dos democratas em entender as mudanças da economia americana nos últimos 30 anos seria uma melhor explicação para sua chegada à presidência. Há populistas na Itália, sem que a democracia esteja ameaçada. A eleição de Macron, Pedro Sanchez e muitos outros não populistas pelo mundo afora mostra que a democracia continua firme e forte. Para os autores, haveria, novamente, um problema de seleção no argumento de Lara Resende que não pode de forma alguma ser generalizado.
Cavalcanti & Cardoso são também críticos à proposta de uma política fiscal contracíclica no Brasil. Para eles, parece que Lara Resende não entendeu que o Brasil não tem hoje esta opção. Entre 2014 e 2018, período em que houve déficits primários seguidos, a dívida pública bruta saltou de 56% do PIB para quase 80%, segundo os dados do Banco Central. O que permite hoje a rolagem da dívida de longo prazo, a uma taxa real de juros anual baixa para o padrão histórico brasileiro, é a expectativa de que a reforma da previdência será aprovada. Uma retomada autônoma de investimentos públicos é inviável, não há espaço fiscal para isto. Ela poderá vir de uma bem sucedida rodada de licitações de obras de infraestrutura a serem conduzidas por empresa privadas.
A única política anticíclica disponível no momento é a monetária. Esta segue balizada pelo regime de metas para a inflação. Desde a queda de Dilma Rousseff, muitos fatores – vários deles na direção da responsabilidade fiscal – contribuíram para que a taxa nominal de curto prazo caísse a 6,5%, seu menor valor histórico. Entre eles: a aprovação da emenda do teto de gastos, a contenção dos bancos públicos, a recuperação da independência de fato do BC, para citar apenas os principais.
Uma nova rodada de redução da taxa Selic poderá vir nas próximas reuniões do Copom. Apesar de baixa para padrões nacionais, quando comparada ao observado no exterior – 2,5% nos EUA e zero na União Européia -, a taxa nominal de curto prazo brasileira ainda é bastante alta. A potência da política monetária para impulsionar a demanda de curto prazo está, portanto, ainda longe de ter sido exaurida.
A penúltima crítica está ligada à afirmação feita por Lara Resende de que a Grécia não tinha escolha: ou se submetia ao ajuste fiscal ou seria obrigada a sair da zona do euro, com custos possivelmente maiores e que, no Brasil, a obsessão pelo equilíbrio fiscal no curto prazo é uma auto-imposição tecnocrática suicida. Eles concordam que a Grécia não tinha mesmo escolha, assim como não tinham Irlanda, Portugal e Espanha. Mas, dizem que ele deveria lembrar que a Argentina, por emitir sua própria moeda, tinha escolha e, tendo preferido o caminho mais confortável, encontra-se à beira do precipício. A última crítica dirige-se a previsão feita de que neste início de século, o dogmatismo ameaça derrotar a frágil democracia liberal brasileira. Para eles, nem Olavo de Carvalho ousaria tanto.
Em síntese, o debate está longe de estar concluído. Diante das profundas mudanças que tem ocorrido nas economias capitalistas e da dramática situação do Brasil, é salutar o questionamento feito por André Lara Resende ao senso comum da ortodoxia econômica. Como ele próprio afirma, respondendo a Bacha[5], “quando a produtividade da economia está estagnada há três décadas, quando a infraestrutura está obsoleta a ponto dos viadutos na mais rica cidade do país desabarem por falta de conservação, quando o desemprego é superior a 12% da força de trabalho, quando a população das cidades está desesperada com a criminalidade e a falta de segurança, quando o serviço de saúde pública é deplorável, é triste que no lugar de somar esforços para pensar em soluções, os economistas se apeguem ferrenhamente à defesa de dogmas que já se mostraram incapazes de tirar o país da crise”.
[1] Crise da macroeconomia, Valor Econômico (08/03/2019). Liberalismo e dogmatismo, Valor Econômico (13/05/2019).
[2] Graner, F. Economista sugere vender reservas, Valor Econômico (28/05/2019).
[3] Bacha, E. L. Comentários ao texto de André Lara Resende, Valor Econômico (25/03/2019). Paula, L. F. Admirável Mundo Novo, Valor Econômico (01/04/2019). Cavalcanti P. F. & Cardoso, R. F. Solução fácil, popular e errada, Valor Econômico (16/05/2019).
[4] FMI. Monitor Fiscal, abril 2019.
[5] Lara Resende, A., André Lara Resende responde às críticas de Edmar Bacha. Valor Econômico (28/03/2019).