Indecente, pornográfica são alguns adjetivos que têm sido usados para qualificar a alta taxa de juros no Brasil. Avaliação moral à parte, não me interessa discutir nesse artigo as inúmeras explicações que têm sido dadas pelos meus colegas economistas, desde pelo menos o Plano Real, para as altíssimas taxas de juros brasileiras, mas sim buscar uma resposta para a seguinte questão: por que mesmo diante da maior recessão econômica já vivida pelo Brasil, o banco central manteve a taxa básica de juros (SELIC) tão alta e só recentemente começou a baixá-la?
Uma possível resposta para essa questão pode ser buscada na breve retrospectiva teórica sobre política monetária feita por Lara Resende[2]. Para ele, os modelos quantitativistas, tanto o keynesiano quanto o monetarista, que consideram a quantidade de moeda como determinante do nível de preços, estão ultrapassados. Eles foram substituídos por modelos neokeynesianos que incorporam a hipótese de expectativas racionais, excluem a moeda, e tratam a taxa de juros como arma exclusiva no combate à inflação. Para o autor, a experiência recente dos bancos centrais dos países ricos justificaria tal substituição, uma vez que o brutal aumento da oferta de moeda não fez os preços dispararem. Ao contrário, a inflação manteve-se excepcionalmente baixa.
Nas últimas versões desses modelos neokeynesianos, outra hipótese, a de Irving Fisher[3], foi incorporada. Segundo ela, a taxa de juros nominal de equilíbrio (i) é igual a taxa real (r) mais a expectativa de inflação futura (E(p)). Ou seja, i = r + E(p). Tais modelos, ainda na visão de Lara Resende, prevêem que a relação entre taxas de juros e inflação, no longo prazo, seria inversa à que se sempre se acreditou: quando o banco central eleva as taxas de juros, a inflação aumenta; e quando o banco central reduz a taxa de juros, a inflação cai. “Essa inversão seria resultado das expectativas racionais que não olham para trás, para o passado, como é o caso das expectativas adaptativas, mas sim para frente, para o futuro”. Nesta abordagem, a taxa nominal de juros, fixada pelo banco central, atuaria como sinalizadora da inflação futura. Como há forte evidencia na literatura econômica que, no curto prazo, juros mais altos reduzem a inflação, é preciso compreender como é possível que a alta dos juros no curto prazo reduza a inflação, mas não no longo prazo.
Para explicar melhor este último ponto, Lara Resende usa o trabalho de Cochrane[4] que, por sua vez, lança mão da chamada Teoria Fiscal do Nível de Preços (TFNP). Para a TFNP, o que ancora as expectativas e determina a taxa de inflação é a política fiscal. A política fiscal, o equilíbrio sustentável de longo prazo da dívida pública é que, em última instância, determinaria a taxa de inflação[5].
Usando a TFNP e a economia brasileira como referência, a seguinte análise pode ser feita a respeito do efeito da política fiscal sobre as expectativas. As contas públicas brasileiras começaram a se deteriorar fortemente a partir de 2014. O país teve o primeiro déficit primário da série histórica do banco central (0,63% do PIB), um déficit nominal de 6% do PIB, e uma dívida bruta também com relação ao PIB que pulou de 52% em 2013 para 57% no final de 2014. Em 2015, os números continuaram a piorar. O déficit nominal de 10% ficou bem acima da média de 4,7% dos países emergentes, segundo o FMI, aumentando ainda mais o impacto negativo sobre as expectativas. A raiz do problema estava nos orçamentos do governo Dilma, mais especificamente nas Leis de Diretrizes Orçamentárias que sistematicamente previam um crescimento exagerado do PIB (descolado da realidade), causando descompasso entre a receita projetada e a receita real.
Ampliando a análise acima, para não ficar restrito à questão fiscal e dar conta do processo de deterioração das expectativas ocorrido no Brasil, deve-se agregar: as desastradas tentativas de controle de preços sob várias formas, para tentar evitar uma inflação que o próprio governo Dilma contratou a partir do primeiro semestre de 2012, quando baixou a taxa de juros e desvalorizou fortemente o câmbio; e os efeitos negativos da Operação Lava-Jato sobre a execução do investimento público (empreiteiras embargadas) e, portanto, sobre a geração de renda e aumento da ocupação.
Diante do exposto, a resposta que pode ser dada à questão colocada na introdução desse artigo é que a combinação da TFNP com os modelos neokeynesianos que incorporam a hipótese de Fisher pode estar por trás dos passos até agora dados pelo banco central brasileiro. Na duas primeiras reuniões do COPOM (julho e agosto de 2016), sob égide da nova diretoria, a taxa SELIC foi mantida em 14,25%. Assim, dado as evidências de que o processo de desinflação não tinha ainda atingido componentes mais sensíveis ao ciclo econômico e à política monetária – mesmo diante dos baixos índices de utilização da capacidade produtiva da economia e do alto desemprego – e diante da ausência de um programa de controle das despesas públicas, o banco central optou, no curto prazo, por manter uma rígida política monetária. Nas condições objetivas de junho de 2016 (déficit primário de 2,5% do PIB, relação dívida bruta/PIB de 68,6%, inflação de serviços elevada, e expectativas totalmente desancoradas), uma redução das taxas de juros em julho não seria crível. Como resultado da manutenção do aperto monetário, segundo a PNAD contínua, a massa salarial real cresceu muito pouco (1,35% entre junho e dezembro de 2016), abrindo espaço para a posterior queda dos preços do grupo alimentos e bebidas, cujo peso no IPCA é de cerca de 30%.
Simultaneamente a essa estratégia inicial de manter uma dura política monetária, a nova diretoria explicitou sua firme determinação de perseguir a meta de inflação de 4,5%, comprometendo-se a deixar de considerar o teto da meta de 6,5% como piso, comportamento que marcou a gestão anterior. Adicionalmente, o presidente Temer e seu ministro da Fazenda enfatizaram a autonomia operacional do Banco Central. Estavam criadas as condições para uma reversão das expectativas negativas acerca da inflação futura e, assim, para uma redução das taxas de juros sem comprometer a inflação no longo prazo. Ela começou a cair em modestos 25 pontos-base nas reuniões seguintes de outubro e dezembro de 2016.
Mais tarde, a PEC do teto dos gastos foi aprovada, reforçando o processo de reversão das expectativas negativas acerca da inflação futura. Além disso, a retomada econômica se mostrou mais demorada e gradual que a antecipada previamente; os índices de utilização da capacidade produtiva da indústria continuaram baixos; o desemprego permaneceu alto; os efeitos sobre a economia brasileira de uma possível reversão na política econômica dos EUA se mantiveram limitados; e a queda recente da inflação foi mais favorável que o esperado (o IPCA caiu de 10,7% em dezembro de 2015 para 6,3% em dezembro de 2016), com sinais de um processo de desinflação mais difundido. As expectativas de inflação, apuradas pela pesquisa FOCUS, recuaram para algo em torno de 4,8% em 2017 e permanecem ancoradas próximas a 4,5% para 2018 e horizontes mais distantes. Diante desse quadro, o COPOM decidiu, de maneira unânime, na reunião realizada em janeiro de 2017, acelerar o ritmo de redução da taxa de juros, de 25 para 75 pontos-base, levando a SELIC para 13,00% ao ano.
Se as hipóteses teóricas aqui apresentadas a partir do artigo de Lara Resende forem aceitas, e parecem ter sido pelo banco central brasileiro, a política monetária só teria a capacidade de moderar a inflação no curto prazo. A estabilidade dos preços dependeria, em última instância, do equilíbrio fiscal de longo prazo. Implícita nesse raciocínio está a tese de dominância fiscal. Ela ocorre quando a política fiscal está tão fora de controle que, no limite, neutraliza a ação da política monetária. Neste caso, o aumento de juros pelo Banco Central agrava de tal forma o desequilíbrio fiscal que se torna contraproducente e pode não apenas desancorar as expectativas de inflação, mas até piorá-las. Se esta avaliação sobre a estratégia do banco central estiver correta, somente quando ficar claro para a autoridade monetária que avanços na discussão da reforma da previdência social estão ocorrendo no Congresso, ela poderá acelerar ainda mais a queda da taxa de juros, reforçando a reversão das expectativas negativas sobre o desempenho da economia que se observa.
[1] Agradeço os comentários feitos pelo Professores André Ghirardi e Jorge Antônio.
[2] Ver Lara Resende, A. “Juros e Conservadorismo Intelectual”. Valor Econômico, 13/01/2017.
[3] Ver Fisher, I. “Teoria dos Juros”. Coleção os Economistas, Abril Cultural, 1984.
[4] Ver Cochrane, J. H. “Michelson-Morley, Occam and Fisher: The Radical Implications of Stable Inflation at Near-Zero Interest Rates”. Dec, 2016, http//faculty.chicagobooth.edu/john.cochrane.
[5] De forma geral, o referencial teórico até aqui exposto propõe um nexo causal entre expectativa de inflação, juros e contas públicas. O câmbio, variável que costuma ter peso no processo inflacionário, não é abordado.