A região semiárida experimenta ciclos de estiagem, sempre considerados como o mais grave dos últimos 50 anos! Celso Furtado, há mais de 50 anos, em uma das suas reflexões sobre o Nordeste, lembrou que nunca seria demais afirmar que “a seca é parte da realidade nordestina e em particular do semiárido, assim como as neves perenes estão para os esquimós”. A tradução da observação furtadiana é que não podemos nos surpreender com a inexorabilidade da seca, e, por isso, é preciso organizar as atividades produtivas na região, não somente para garantir a sobrevivência da população, mas, acima de tudo para assegurar a possibilidade do seu progresso. Missão que, até o momento, não foi realizada.
Nesses 50, 60 anos, muitas coisas foram e continuam sendo feitas por aqueles que governam, contribuindo para a sobrevivência e a subsistência da população do semiárido, mas não são suficientes para a promoção do progresso e da transformação da realidade territorial na sua dimensão de formação socioespacial, ou na definição de Pierre Bourdieu, de interação homem-território-natureza.
Max Weber, in Economia e Sociedad, pondera que, quando um ente, por exemplo, o governo, propõe-se a implementar uma ação transformadora, para que alcance os resultados desejados, precisa dispor dos meios apropriados para realizá-la e, na medida em que essa ação depende da iniciativa de outro agente da transformação, deve-se por à sua disposição os meios que induzam aos objetivos desejados. Dentre esses meios, impõe-se um esforço concentrado para disponibilizar um instrumental técnico-científico que, conhecendo o clima e as características físico-químicas do solo e de suas potencialidades, desenvolva espécies vegetais e animais adaptados à ecologia da região; que monitore os recursos de água de superfície e subterrânea e das possibilidades do seu aproveitamento; que amplie o conhecimento geológico do cristalino rochoso e do seu potencial mineral e que seja estudado o perfil etnológico da população, associando esses conhecimentos a formas criativas de organização da produção, substituindo a visão conservadora orientada para “os problemas do semiárido”, pela visão estratégica de operar “as suas potencialidades e oportunidades”.
O desenvolvimento territorial deve ser uma ação sistêmica, observando os aspectos relativos aos desequilíbrios da distribuição espacial das populações, aos desperdícios dos recursos naturais, aos impactos que as novas técnicas e novas estruturas produtivas, principalmente as do meio rural, causam nas populações originárias e nas atividades produtivas pré-existentes, além de oferecer à população equipamentos e serviços públicos eficientes. No caso da Bahia, o desenvolvimento da região semiárida ganha contorno ainda mais estratégico, tanto pela sua dimensão territorial, equivalente a 388 mil Km² (nela caberia, juntos, os Estados do Ceará, Pernambuco, Paraíba, Alagoas e Sergipe e ainda sobrariam 35 mil Km²), quanto pela população de cerca de 6,0 milhões de pessoas, cujas condições socioeconômicas nos conferem o incômodo primeiro lugar – nacional – em número de famílias inscritas no Programa Bolsa Família.
Dentre essas ações necessárias, proponho o fortalecimento do aparato técnico-científico da estrutura de estudos do semiárido da Embrapa, com a instalação de Centros de Pesquisa no próprio território; de que ao na sequência dos Atlas Eólico e Solarimétrico da Bahia, se elabore os Atlas de Microclima e Geológico do Estado, que se intensifique o conhecimento geológico da região, disponibilizando informações em escala de 1:100.000 e em semidetalhe dos distritos mineiros; que se observe o momento de oportunidade para implementação do tramo sul da transposição do Rio São Francisco, que contemplaria o semiárido da Bahia. Cabe ainda promover uma profunda reorientação da forma de atuação do Banco do Nordeste na aplicação dos recursos do Fundo de Financiamento do Nordeste (FNE), predominantemente destinados à agricultura familiar. Apoiá-la é um imperativo, mas deve ser objeto de programa de financiamento do Tesouro Nacional ou de outra fonte institucionalmente adequada e não do FNE. Esses recursos, como determinado na Lei 7.827/89, foram criados para promover o desenvolvimento da base produtiva regional, objetivando a redução das desigualdades intra e inter-regionais donde se depreende uma ação transformadora da realidade que propicie o progresso desses produtores e não a sua sobrevivência, repetindo formas arcaicas existentes.
Quando observamos as rendas “per capita” dos estados brasileiros em 1985, os dez com as piores rendas eram os nove estados nordestinos, mais o Pará, e, quando analisamos os últimos dados do IBGE de 2014, os estados do Nordeste ficaram entre os onze mais pobres do país, acompanhados além do Pará, do Acre. Praticamente a condição de pobreza e atraso relativos continua inalterada. Some-se o fato do Nordeste deter o maior número de famílias que recebem o Bolsa Família, assim como a maior população de deficientes que recebe o Benefício de Prestação Continuada.
Vale dizer que na Bahia, a maior economia da região, a renda “per capita” equivale a cerca de 58% da renda per capita média brasileira, evidenciando o malogro das pretensas políticas de desenvolvimento da região, em grande parte decorrente da ausência dos investimentos indutores ao lado da preservação das velhas do formas do fazer, amplificada pela ineficácia da alocação desses recursos administrados pelo Banco do Nordeste, que devem ser orientados para viabilizar formas inovadoras de organização da produção, através da incorporação de novas tecnologias e do fortalecimento de mecanismos associativos de natureza empresarial e social, que eleve a produtividade, o valor adicionado da produção e a geração de excedentes, possibilitando o progresso social. Ainda a respeito da renda “per capita”, vale salientar que além de não retratar a apropriação média da riqueza pelos indivíduos da população analisada, no Nordeste, a concentração da riqueza é ainda mais elevada que a média brasileira, agravando o quadro de pobreza relativa.
A região Nordeste representa 25% do território nacional, mas, abriga 50% das propriedades de agricultura familiar do Brasil, equivalendo a 2,2 milhões de propriedades, 700 mil delas, no Estado da Bahia. Segundo estudos realizados pelo Governo do Estado, cerca de 70% são empreendimentos desestruturados, incapazes de sustentar o núcleo familiar residente, 20% apresenta um estágio intermediário, ainda exigindo que os adultos trabalhem fora para assegurar algum rendimento que assegure a reprodução social, de si mesmo e de sua família e apenas 10%, são considerados autossuficientes. É certo que o capitalismo é um sistema que só pode viver em expansão, e que esse movimento ocorre de forma combinada com a ampliação do modo de produção capitalista com um vasto leque de outras formas de exploração e de dominação, que operam de modo articulado, mas que não são absorvíveis ou integradas às modernas tecnologias; indicando que um território, ou uma nação inteira, pode perpetuar-se em um estado de atraso, ainda assim, integrado e servindo de modo reflexo aos polos econômicos dominantes. Essa tendência à proletarização afeta uma parte crescente da população desses espaços territoriais e torna-se uma ameaça no plano macrossocial, dado que tanto enfraquece o nível de demanda (o mercado), como ameaça a desintegração da sociedade e do pacto social, realidade claramente percebida pelo aumento da migração desestruturada de comunidades originárias, e pelo aumento da violência e da criminalidade.
As possibilidades de superação desse atraso são perfeitamente mensuráveis e factíveis, mas, estão fora da lógica das ideias dominantes dos mercados autorregulados, cuja tese se baseia na suposta capacidade de determinação do “valor em risco”, garantindo a racionalidade da alocação dos recursos de modo a maximizar o resultado econômico que melhor serve à sociedade. Nesse sentido, qualquer ação de estado que, deliberadamente, pretenda investir valores significativos em espaços econômicos cuja dinâmica não indicaria uma preferência de alocação de capitais privados, sofrerá restrições técnicas, políticas e midiáticas de modo a direcionar os recursos para áreas de melhor “retorno do capital investido”, subordinando a condução política da economia à razão utilitária e de mercado.
Esse dilema traz a atualidade do pensamento do filósofo e historiador húngaro Karl Polanyi que identificou como a dependência do Estado à lógica da produtividade e da fraude teórica dos “mercados autorregulados” tem contribuído para a desestruturação de autonomias sociopolíticas e econômicas de pequena escala. Em sua obra de referência, “A Grande Transformação, Polanyi classifica a sociedade regulada por mercados livres e concorrenciais como uma “utopia” do pensamento econômico e político liberal, que uma vez imposta à sociedade pela força política, imediatamente gerará rupturas insustentáveis na integração social. Como afirmava com louvável lucidez:
A economia humana está, assim, incrustada em instituições, tanto econômicas como não econômicas. A inclusão do elemento não econômico é vital. […] Uma redistribuição de poder de compra pode ser valorizada em si mesma, i.e., para os efeitos exigidos por ideias sociais, como no Estado-providência contemporâneo.
Nessa compreensão, o filósofo Michel Foucault captou a essência do neoliberalismo, ao defini-lo como “uma prática de governo na sociedade contemporânea. O credo neoliberal não pretende suprimir a ação do Estado, mas, sim, “introduzir a regulação do mercado como princípio regulador da sociedade”. Ou seja, a arte neoliberal de governar se assenta na imposição do predomínio das formas mercantis sobre o conjunto das relações sociais tornando-se um “poder enformador da sociedade”.
O que a obra de Polanyi nos traz, nesse contexto, para o entendimento da questão do desenvolvimento territorial é que a produção e distribuição de bens estão socialmente incrustadas em estruturas sociais; ou seja, mais do que relações de economia de mercado incrustada nas instituições, o que está em causa é a relação da economia com a sociedade.
Além dessas contradições políticas e ideológicas, podemos afirmar que faltou a impulsão dinâmica geradora do desenvolvimento e os dados demonstram a permanência das forças concentradoras do conhecimento técnico e da renda, em contradição com o real sentido do desenvolvimento, que, nas palavras de Celso Furtado, “deve ser não apenas um processo de acumulação macroeconômica, mas principalmente uma via de acesso a novas formas sociais que estimulem a criatividade humana para atender às aspirações de uma coletividade”.
A experiência histórica demonstra que essa impulsão dinâmica deve ser centrada na expansão industrial e, para tanto, devemos também priorizar a questão logística, dado que o processo de desenvolvimento, como nos lembra o Mestre Milton Santos, “somente ocorre nos espaços territoriais nos quais a sociedade e os agentes econômicos dispõem da produção e da fluidez da tecnologia, da educação, da informação, das finanças e da mobilidade dos fatores da produção (maquinaria, insumos e produtos) e das pessoas, em condições eficientes e competitivas”. No que concerne à logística, o Nordeste, e em particular o semiárido, padecem do famoso dilema de Hirschman, de que não se investe porque não há demanda, porém, a demanda somente ocorrerá se o investimento for feito. Considerando a baixa capacidade privada e pública de investimento da região, esse dilema poderá ser superado através de uma Política Nacional de Desenvolvimento Regional, que crie Fundos Constitucionais específicos para garantia dos investimentos até que a região e a sua sociedade alcancem indicadores mínimos de reversão das desigualdades regionais, pretensão que implicará em um novo pacto federativo.
Voltando a Furtado, é preciso investir, porque “o desenvolvimento não é um processo espontâneo; ele decorre da decisão política de promove-lo”.