As identidades da contabilidade de uma nação têm muitas implicações esclarecedoras que ajudam o economista, desde que ele não deseje contrariar a álgebra, a refletir sobre os resultados de políticas econômicas adotadas e a desnudar possíveis futuras opções para tais políticas. O objetivo desse artigo é justificar essas afirmações, usando a economia brasileira como ilustração.
Como se sabe, partindo das definições do Produto Nacional Bruto, Produto Interno Bruto, Renda Nacional, componentes de gastos do produto, igualdade entre produto e renda e poupanças pública e privada chega-se à equação abaixo[1].
(I – S) + (G – T) + (EX – IM) = 0
O primeiro termo da equação é a relação entre investimento (I) e poupança (S) do setor privado da economia. O segundo termo mostra os gastos governamentais (G) e a arrecadação tributária (T), o orçamento governamental. O terceiro termo é o saldo em transações correntes, ou seja, o resultado líquido das vendas de bens e serviços feitas para estrangeiros (EX) e das compras de bens e serviços produzidos fora do país (IM) [2].
A equação explicita que a soma desses três termos deve sempre ser zero. Existem várias possibilidades para isto ocorrer. Por exemplo, suponham que o primeiro termo da equação seja positivo. Quando isto ocorre, as empresas privadas do país estão investindo mais do que as famílias estão poupando ou a poupança é baixa em razão do alto consumo das famílias. Neste caso, o saldo das transações correntes deverá ser deficitário, importações de bens e serviços maiores que as exportações, (sinal negativo), de modo que esse investimento adicional possa ser efetivamente adquirido pelas empresas no exterior, e/ou será necessário que os gastos do governo sejam menores que a arrecadação tributária, superávit no orçamento público, (sinal negativo), de modo que o governo viabilize parte da poupança que está permitindo a acumulação de bens de capital pelas empresas.
Convém enfatizar que apesar da equação ser uma identidade, não estando baseada em nenhuma teoria de comportamento econômico, ela ajuda o economista, insisto, a refletir sobre os resultados de políticas econômicas adotadas e a desnudar possíveis futuras opções para tais políticas. Ilustro essa afirmação com as contas nacionais brasileiras.
O ponto de partida é o orçamento governamental, o segundo termo da equação. Imaginem um simplificado orçamento governamental. Do lado das despesas três itens principais: gastos gerais (bens, serviços e salários), dispêndios com programas sociais e subsídios, e o pagamento de juros, correção monetária e correção cambial pelos empréstimos que o governo contrai ao gastar mais do que arrecada. Do lado das receitas, a arrecadação tributária.
Os governos com déficit orçamentário, e não desejando emitir moeda, costumam emitir títulos da dívida para financiá-lo. Assim procedendo, acumulam, ao longo dos anos, uma dívida pública sob a qual incidem os juros e correções acima citados. A grande maioria dos países possui déficit orçamentário, mas isto não significa dizer que todos sejam iguais diante dos seus credores internos e externos. Governos de países emissores de moeda aceita internacionalmente, com adequado perfil e composição da dívida, histórico de bom pagador, economia diversificada e em crescimento, empresas inovadoras, e sistemas bancários adequadamente capitalizados despertam baixa desconfiança.
Além desses fatores, dá-se muita importância à capacidade dos governos gerarem superávit primário nas suas contas com relação ao PIB do país. Ele ocorre quando a arrecadação tributária supera os gastos gerais, sociais e com subsídios. Ou seja, a geração de superávit primário pressupõe a capacidade de o Estado cortar gastos (excluindo juros e correções) e/ou elevar tributos. Com ele, o governo gera recursos para pagar os juros e correções a quem, ao comprar seus títulos, lhe emprestou dinheiro, e reduz ou estabiliza a dívida pública com relação ao PIB. Quando o superávit primário não é suficiente para cobrir tais pagamentos diz-se que o governo teve um déficit público nominal.
No Brasil, o segundo termo da equação apresenta um sinal positivo, pois, como se sabe, o país vem convivendo com um crescente déficit orçamentário. O superávit primário com relação ao PIB, que chegou a ser de 3,4% em 2008, caiu para 2,2% em 2012, 1,7% em 2013 e, em 2014, transformou-se em um déficit primário de 0,6%. Naquele ano, pela primeira vez desde 1997, o Brasil teve déficit primário! Queda de arrecadação devido ao menor ritmo de crescimento econômico, juros altos para tentar conter a inflação e, em um ano de uma acirrada disputa eleitoral, elevação de gastos, desonerações tributárias, e concessão de subsídios foram os principais responsáveis pelo estrago.
Com um superávit primário menor, que se transformou em déficit primário, o déficit nominal cresceu, pois diminuíram os recursos para pagar os juros e correções e, consequentemente, a dívida bruta do governo também se elevou. O déficit nominal saltou de 2,3% do PIB em 2012 para 6,0% em 2014 e a dívida bruta aumentou, no mesmo período, de 54,8% do PIB para 57,2% do PIB, superando tanto a média dos países emergentes quanto a média dos países de renda média que se situa em torno de 40% do PIB, de acordo com a OCDE. Em 2015 e 2016, esses indicadores fiscais continuaram a piorar. Déficit primário de, respectivamente, 1,9% e 2,5% do PIB, dívida pública de 66,5% e 69,5% do PIB, e déficit nominal de 10,2% e 8,9% do PIB.
O déficit nominal foi o único indicador a apresentar uma discreta melhora, influenciada pela queda dos juros e a valorização cambial. Ainda assim, ele está bem acima da média de 4,7% dos países emergentes, segundo o FMI. Considerando os dados fiscais até agora divulgados e as projeções feitas pelas autoridades econômicas, esse deteriorado quadro fiscal não irá se alterar, podendo piorar, ao final de 2017.
Isto posto, uma possível conclusão que se pode extrair da equação é a seguinte. Para que a identidade seja respeitada, se o governo brasileiro optar por continuar gastando bem mais que arrecada, mantendo esse elevado déficit orçamentário, (sinal positivo), o país continuará convivendo com um déficit de investimento privado quando comparado com a poupança privada (sinal negativo) e/ou um déficit na conta corrente com o resto do mundo (sinal negativo) [3]. Ou seja, o governo precisará continuar captando poupança privada interna e poupança externa, via emissão de dívida, para obter os recursos que ele está gastando além de sua arrecadação tributária.
Por quanto tempo isto pode durar? Uma resposta precisa não é dada pela equação. O que se pode dizer é: tal situação perdura até quando os agentes privados e o resto do mundo tolerem financiar esse déficit público; e, pelos motivos já expostos, o custo desse financiamento é bem mais alto e a tolerância bem menor no caso de países emergentes como o Brasil.
Outras possíveis conclusões podem ser obtidas, tomando como ponto de partida os demais termos da equação. Deixo aos leitores essa tarefa.
[1] Para maiores detalhes ver IBGE.
[2] O saldo em transações correntes inclui também as transferências unilaterais de renda.
[3] Os crescentes e expressivos superávits no balanço comercial têm reduzido o déficit na conta corrente do Brasil, mas não são suficientes para eliminá-lo, devido ao tamanho do déficit no balanço de serviços. Em 2015, o déficit na conta corrente foi de US$ 58,9 bilhões (3,28% do PIB) e em 2016 caiu para US$ 23,5 bilhões (1,30% do PIB).